sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014 0 comentários

Romance : Memórias Póstumas de Brás Cubas


  • AO LEITOR


Que Stendhal confessasse haver escrito
um de seus livros para cem
leitores, coisa é que admira e consterna.
O que não admira, nem
provavelmente consternará é se este
outro livro não tiver os cem
leitores de Stendhal, nem cinquenta,
nem vinte e, quando muito,
dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na
verdade, de uma obra difusa, na
qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma
livre de um Sterne, ou de um
Xavier de Maistre, não sei se
lhe meti algumas rabugens de
pessimismo. Pode ser. Obra de
finado. Escrevi-a com a pena da
galhofa e a tinta da melancolia, e
não é difícil antever o que poderá
sair desse conúbio. Acresce que a gente
grave achará no livro umas
aparências de puro romance, ao passo
que a gente frívola não achará
nele o seu romance usual; ei-lo aí
fica privado da estima dos graves e
do amor dos frívolos, que são as
duas colunas máximas da opinião.
Mas eu ainda espero angariar as simpatias
da opinião, e o primeiro
remédio é fugir a um prólogo explícito e
longo. O melhor prólogo é o
que contém menos coisas, ou
o que as diz de um jeito obscuro e
truncado. Conseguintemente,
evito contar o processo extraordinário
que empreguei na composição destas
Memórias, trabalhadas cá no
outro mundo. Seria curioso, mas
nimiamente extenso, e aliás
desnecessário ao entendimento da obra.
A obra em si mesma é tudo:
se te agradar, fino leitor, pago-me
 da tarefa; se te não agradar,
pago-te com um piparote, e adeus.
 
                                                                 Brás Cubas
 
sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014 0 comentários

LUA NOVA


 
 

Mãe dos frutos, Jaci, no alto espaço
Ei-la assoma serena e indecisa:
Sopro é dela esta lânguida brisa
Que sussurra na terra e no mar.
Não se mira nas águas do rio,
Nem as ervas do campo branqueia;
Vaga e incerta ela vem, como a idéia
Que inda apenas começa a espontar.
 
 
E iam todos; guerreiros, donzelas,
Velhos, moços, as redes deixavam;
Rudes gritos na aldeia soavam,
Vivos olhos fugiam p’ra o céu:
Iam vê-la, Jaci, mãe dos frutos,
Que, entre um grupo de brancas estrelas,
Mal cintila: nem pôde vencê-las,
Que inda o rosto lhe cobre amplo véu.
 
 
E um guerreiro: “Jaci, doce amada,
Retempera-me as forças; não veja
Olho adverso, na dura peleja,
Este braço já frouxo cair.
Vibre a seta, que ao longe derruba
Tajaçu, que roncando caminha;
Nem lhe escape serpente daninha,
Nem lhe fuja pesado tapir.”
 
 
E uma virgem: “Jaci, doce amada,
Dobra os galhos, carrega esses ramos
Do arvoredo coas frutas que damos
Aos valentes guerreiros, que eu vou
A buscá-los na mata sombria,
Por trazê-los ao moço prudente,
Que venceu tanta guerra valente,
E estes olhos consigo levou.”
 
 
E um ancião, que a saudara já muitos,
Muitos dias: “Jaci, doce amada,
Dá que seja mais longa a jornada,
Dá que eu possa saudar-te o nascer,
Quando o filho do filho, que hei visto
Triunfar de inimigo execrando,
Possa as pontas de um arco dobrando
Contra os arcos contrários vencer.”
 
 
E eles riam os fortes guerreiros,
E as donzelas e esposas cantavam,
E eram risos que d’alma brotavam,
E eram cantos de paz e de amor.
Rude peito criado nas brenhas,
— Rude embora, — terreno é propício;
Que onde o gérmen lançou benefício
Brota, enfolha, verdeja, abre em flor.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014 1 comentários

HELENA


Conselheiro Vale morreu às 7 horas da noite de 25 de abril de 1859.
 
Morreu de apoplexia fulminante, pouco depois de cochilar a sesta, —


segundo costumava dizer, — e quando se preparava a ir jogar a usual

partida de voltarete em casa de um desembargador, seu amigo. O Dr.

Camargo, chamado à pressa, nem chegou a tempo de empregar os

recursos da ciência; o Padre Melchior não pôde dar-lhe as consolações

da religião: a morte fora instantânea.

No dia seguinte fez-se o enterro, que foi um dos mais concorridos que

ainda viram os moradores do Andaraí. Cerca de duzentas pessoas

acompanharam o finado até à morada última, achando-se

representadas entre elas as primeiras classes da sociedade. O

conselheiro, posto não figurasse em nenhum grande cargo do Estado,

ocupava elevado lugar na sociedade, pelas relações adquiridas,

cabedais, educação e tradições de família. Seu pai fora magistrado no

tempo colonial, e figura de certa influência na corte do último vice-rei.

Pelo lado materno descendia de uma das mais distintas famílias

paulistas. Ele próprio exercera dois empregos, havendo-se com

habilidade e decoro, do que lhe adveio a carta de conselho e a estima

dos homens públicos. Sem embargo do ardor político do tempo, não

estava ligado a nenhum dos dois partidos, conservando em ambos

preciosas amizades, que ali se acharam na ocasião de o dar à

sepultura. Tinha, entretanto, tais ou quais idéias políticas, colhidas nas

fronteiras conservadoras e liberais, justamente no ponto em que os

dois domínios podem confundir-se. Se nenhuma saudade partidária lhe

deitou a última pá de terra, matrona houve, e não só uma, que viu ir a

enterrar com ele a melhor página da sua mocidade.
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ESPINOSA

 

Gosto de ver-te, grave e solitário,

Sob o fumo de esquálida candeia,

Nas mãos a ferramenta de operário,

E na cabeça a coruscante idéia.

E enquanto o pensamento delineia

Uma filosofia, o pão diário

A tua mão a labutar granjeia

E achas na independência o teu salário.

Soem cá fora agitações e lutas,

Sibile o bafo aspérrimo do inverno,

Tu trabalhas, tu pensas, e executas

Sóbrio, tranqüilo, desvelado e terno,

A lei comum, e morres, e transmutas

O suado labor no prêmio eterno.

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MUNDO INTERIOR

 


Ouço que a Natureza é uma lauda eterna

De pompa, de fulgor, de movimento e lida,

Uma escala de luz, uma escala de vida

De sol à ínfima luzerna.

Ouço que a natureza, — a natureza externa, —

Tem o olhar que namora, e o gesto que intimida

Feiticeira que ceva uma hidra de Lerna

Entre as flores da bela Armida.

E contudo, se fecho os olhos, e mergulho

Dentro em mim, vejo à luz de outro sol, outro abismo

Em que um mundo mais vasto, armado de outro orgulho,

Rola a vida imortal e o eterno cataclismo,

E, como o outro, guarda em seu âmbito enorme,

Um segredo que atrai, que desafia — e dorme.

sábado, 8 de fevereiro de 2014 0 comentários

AS VENTOINHAS




AS VENTOINHAS

1863

 
Com seus olhos vaganaus,

Bons de dar, bons de tolher.

SÁ DE MIRANDA

A mulher é um cata-vento,

Vai ao vento,

Vai ao vento que soprar;

Como vai também ao vento

Turbulento,

Turbulento e incerto o mar.

Sopra o sul; a ventoinha

Volta asinha,



Volta asinha para o sul;

Vem taful; a cabecinha

Volta asinha,

Volta asinha ao meu taful.

Quem lhe puser confiança,

De esperança,

De esperança mal está;

Nem desta sorte a esperança

Confiança,

Confiança nos dará.

Valera o mesmo na areia

Rija ameia,

Rija ameia construir;

Chega o mar e vai a ameia

Com a areia,

Com a areia confundir.

Ouço dizer de umas fadas

Que abraçadas,

Que abraçadas como irmãs,

Caçam almas descuidadas...

Ah! que fadas!

Ah que fadas tão vilãs!

Pois, como essas das baladas,

Umas fadas,

Umas fadas dentre nós,

Caçam, como nas baladas;

E são fadas,

E são fadas de alma e voz.

É que — como o cata-vento,

Vão ao vento,

Vão ao vento que lhes der;

Cedem três cousas ao vento:

Cata-vento,

Cata-vento, água e mulher.
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OS DOUS HORIZONTES : fecham nossa vida


OS DOUS HORIZONTES

1863

A M. Ferreira Guimarães

Dous horizontes fecham nossa vida:

Um horizonte, — a saudade

Do que não há de voltar;

Outro horizonte, — a esperança

Dos tempos que hão de chegar;

No presente, — sempre escuro, —

Vive a alma ambiciosa

Na ilusão voluptuosa

Do passado e do futuro.

Os doces brincos da infância

Sob as asas maternais,

O vôo das andorinhas,

A onda viva e os rosais;

O gozo do amor, sonhado

Num olhar profundo e ardente,

Tal é na hora presente

O horizonte do passado.

Ou ambição de grandeza

Que no espírito calou,

Desejo de amor sincero

Que o coração não gozou;

Ou um viver calmo e puro

À alma convalescente,

Tal é na hora presente

O horizonte do futuro.

No breve correr dos dias



Sob o azul do céu, — tais são

Limites no mar da vida:

Saudade ou aspiração;

Ao nosso espírito ardente,

Na avidez do bem sonhado,

Nunca o presente é passado,

Nunca o futuro é presente.

Que cismas, homem? — Perdido

No mar das recordações,

Escuto um eco sentido

Das passadas ilusões.

Que buscas, homem? — Procuro,

Através da imensidade,

Ler a doce realidade

Das ilusões do futuro.
Dous horizontes fecham nossa vida
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AS ROSAS


AS ROSAS
 


A Caetano Filgueiras

Rosas que desabrochais,

Como os primeiros amores,

Aos suaves resplendores

Matinais;

Em vão ostentais, em vão,

A vossa graça suprema;

De pouco vale; é o diadema

Da ilusão.

Em vão encheis de aroma o ar da tarde;

Em vão abris o seio úmido e fresco

Do sol nascente aos beijos amorosos;

Em vão ornais a fronte à meiga virgem;

Em vão, como penhor de puro afeto,

Como um elo das almas,

Passais do seio amante ao seio amante;

Lá bate a hora infausta

Em que é força morrer; as folhas lindas

Perdem o viço da manhã primeira,

As graças e o perfume.

Rosas, que sois então? — Restos perdidos,

Folhas mortas que o tempo esquece, e espalha

Brisa do inverno ou mão indiferente.

Tal é o vosso destino,

Ó filhas da natureza;

Em que vos pese à beleza,

Pereceis;

Mas, não... Se a mão de um poeta

Vos cultiva agora, ó rosas,

Mais vivas, mais jubilosas,

Floresceis.
 
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